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Qualquer um REALMENTE pode programar?

Já faz algum tempo que me incomoda muito esta história de que “qualquer um pode programar”, “programar é para todos”, “é fácil programar” e todo este papo democratizador: é meu ofício e, mais que meu ofício, sou um consultor que lida com outros desenvolvedores e que contrata desenvolvedores para trabalhar conosco aqui na itexto.

(e antes de tudo isto, alguém que vive por e para o código. Minha vida é esta)

No dia a dia vendo as pessoas programando ou tentando aprender a dificuldade fica nítida. E, sinceramente, hoje vejo que o desenvolvimento infelizmente (ou felizmente) é para uma minoria. Qualquer um pode programar? Pode, mas bem ao ponto de conseguir prosperar na carreira e fazer a diferença, bem poucos (bem poucos).

Resolvi levantar esta questão depois de topar com este texto: Dificuldades para aprender a programar? Você não é uma pessoa burra. - http://gabsferreira.com/dificuldades-pra-aprender-a-programar-voce-nao-e-uma-pessoa-burra/

Tal como comentei no próprio texto do autor, creio que esta não é uma questão tão simples assim, na realidade, é bem mais complexa e já havia inclusive escrito a respeito no meu próprio blog - Qualquer um pode programar? - https://itexto.com.br/devkico/?p=2695

Hoje tenho uma visão inclusive pior: creio que é importante inclusive dizer à pessoa que seu negócio não é desenvolvimento. Assim como me disseram que meu negócio não era futebol, não vejo problema algum em guiar as pessoas para outros caminhos.

Então resolvi abrir esta discussão aqui: programar é pra qualquer um?

PS:
sinceramente acho uma pena programar não ser para qualquer um, por que é a experiência mais enriquecedora que conheço.

Da mesma forma que nem todos podem ser ou ter somente uma profissão, impossível qualquer um programar.
Se eu não sei, não tive oportunidade ou não tive vontade de jogar bola, eu nunca serei um neymar.
Agora, se eu sou bom no que faço, se me destaco, sou o neymar na minha área.

Penso que nem todos chegam lá, é um caminho árduo e bem chato pra ser sincero, mas no final é recompensador.

Esse texto “Dificuldades… Você não é uma pessoa burra” mais parece um artigo de autoajuda. Não desista, pratique, você consegue, blá blá blá. O que falta na nossa cultura é a conscientização de que você não vai fazer nada que seja foda se você não assumir a responsabilidade pelo próprio aprendizado. E acredito na questão vocacional, você precisa ter uma motivação intrínseca para literalmente lutar contra a área X ao ponto de dominá-la. Eu não tenho essa motivação para ciências biológicas ou humanas.

Na boa, os erros que esse cara cometeu foram: (1) ter ido trabalhar em um lugar sem conhecer nada daquilo com que iria lidar (2) ficado um ano sem se propor a estudar a fundo (um ano trabalhando com web e apresentando muitas dificuldades técnicas?) e (3) não ter desenvolvido autodidatismo suficiente para nossa área - não me levem a mal, não é pecado pedir ajuda, mas nessa situação esse é o meu diagnóstico dele, ele não havia aprendido a “se virar”. Os mais experientes detectam isso, na verdade qualquer um de nós já torcemos o nariz quando alguém pede “como faço minha lição?” em algum fórum.

Acho que a questão é bem mais complicada do que parece. Depende de muitas variáveis.

Já vi muitos ótimos profissionais técnicos se diminuindo por conta da síndrome do impostor (https://en.wikipedia.org/wiki/Impostor_syndrome), alguns até pensando em desistir da carreira por conta disso. Eu mesmo já sofri com isso e vez em quando me pego pensando que não sou bom o suficiente para fazer algo, e percebo que é só minha insegurança falando.

Também já vi aos montes pessoas que não fazem ideia do que estão fazendo pagando de sabichões (https://en.wikipedia.org/wiki/Dunning–Kruger_effect), e em alguns casos ganhando prestígio sabendo muito menos que o estagiário esforçado mas inseguro.

Como saber se a possível falta de conhecimento, habilidade e/ou talento, na verdade está sendo mascarada por outro problema externo a nossa bolha de problemas/soluções objetivas? Nem tudo é preto no branco e vice-versa.

Outro ponto é que o mercado está “carente”. Pode ser que o mercado precise de mais profissionais, ou pode ser que o mercado só precise que sejamos mais assertivos. A resposta para isso, infelizmente acho que ninguém tem, porque tudo depende do contexto: economia, educação, acesso a educação, cultura, etc e etc. Não é só sentar a bunda na cadeira e programar! Seria ótimo se fosse assim tão simples.

Concordo com o pontos do @kicolobo, e do texto do Gabs também. Mas acredito que estamos muito longe de uma resposta sobre isso.

Em dezembro o Dan Abramov escreveu esse texto que achei bem interessante: https://overreacted.io/things-i-dont-know-as-of-2018/. Pra quem não conhece ele, ele criou o Redux, e contribui para o React.js.

Todos começamos de um ponto com pouco conhecimento, com o suficiente para apenas fazer tarefas simples, e através de experiências novas no dia a dia, mentoria, cursos, estudos, projetos pessoais, cagaços, e etc. vamos moldando o profissional que somos hoje e queremos ser no futuro, e está tudo bem não saber tudo, na verdade isso é algo normal. Temos que, inclusive, tomar cuidado com a impressão que passamos para os menos experientes, para não desencorajá-los sem ao menos tentar.

Tenho pensado bastante sobre isto: o que realmente ocorre é a negação (muitas vezes proposital) de um fato simples: temos inteligências múltiplas.

É questão de aceitar realmente: talvez você seja um excelente pintor, mas um péssimo matemático, um bom programador mas péssimo arquiteto.

E, sinceramente, hoje acredito que sim, devemos dizer às pessoas: “olha, este trem aqui é difícil pra kcte, é caro, tem que se esforçar horrores”. Sim, desincentivar mesmo. Este papo de “você pode tudo” parece bonito mas é muito cruel.

Por uma questão de caridade ao invés de exploração. Por que normalmente quando vejo o papo do “qualquer um pode programar” há ou alguém vendendo curso ou empresa procurando desesperadamente mão de obra.

E incentivar os outros ao erro (e um erro que pode tomar suas vidas, caso a pessoa dedique sua vida a algo que realmente não tem habilidade) é uma puta sacanagem. E uma sacanagem irresponsável, por que na prática acaba reduzindo a qualidade média do mercado.

Sobre a síndrome do impostor. É um fenômeno estudado por psicólogos, é real. O problema é quem escreve a respeito e realmente aparece por aí (os Dunning Kruger da vida) que ocultam algo simples. É fácil saber se seu negócio é programar (ou qualquer outro ofício) ou não. Errou, aprendeu com o erro e se tornou um melhor profissional depois disto e curtiu a experiência? Ok, talvez leve jeito pra coisa. Continua dando os mesmos murros em ponta de faca ou tá sempre sofrendo neste processo? Pula fora, não é a sua, vai ser feliz.

O modo como a síndrome do impostor é apresentada oculta uma certa infantilização geral que vivemos hoje (resultante de um mundo no qual temos a satisfação instantânea pra quase tudo). Por que ser adulto (aliás, estar vivo) é isto: é levar porrada, saber lidar e crescer com ela. A não ser que esteja no útero, aí tudo vai ser culpa da sua mãe.

Experiência própria de vida: já tentei ser pintor, ator, escultor, violonista, pianista, filósofo, livreiro, professor de matemática, nadador…

Seu Madruga approves.

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